Aprendiz de viajante
Um dia li num livro:
Creio que, na altura, acreditei no que lia.
Estava doente, tinha quinze anos.
Não me lembro da doença que me levara à cama,
recordo apenas a impressão que me causara,
então, o que acabara de ler.
Os anos passaram – como se apagam as estrelas cadentes
e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto,
persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação.
A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar.
Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos,
mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vaga noite…
Avancei sempre, sem destino certo.
Tudo começou a seguir àquela doença.
Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti.
Fui em direcção ao mar. Segui a rebentação das ondas,
apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude.
Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha;
vi crepúsculos e noite sobre um rio, amei a existência.
Dormia onde calhava; no meio das dunas, enroscado no tojo,
como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo,
em celeiros, garagens abandonadas, uma cama…
e quando regressei, com a ânsia do eterno viajante dentro de mim.
Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida,
se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidiana.
Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um modo de vida.
Caminha, assim, com a leveza, de quem abandonou tudo.
Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma,
no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.
A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que os outros viajantes,
ao passarem pelos mesmos lugares, vêem.
O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo é único,
não se confunde com nenhum outro.
Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos,
purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil;
e o corpo reencontra a harmonia perdida – entre o homem e a terra.
O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz,
os astros, as águas, os peixes e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas.
Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada;
sabe que o homem não foi feito para ficar quieto.
A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue,
mata-lhe a alma – estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água.
Vive ali, e canta – sabendo que a vida não terá sido um abismo,
se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele,
o una de novo ao Universo”
Al Berto in O Anjo Mudo
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