As Crónicas Viver o Porto são pequenas histórias,
escritas ao correr da pena.
Normalmente têm o Porto e a minha pessoa como personagens principais.
No Metro
A senhora que ia sentada à minha frente no metro tinha os lábios pintados de um vermelho muito forte, batom de boa marca de certeza, pela cor e pela forma aparente, sem desbotar.
Mal me sentei, no lugar imediatamente à sua frente e também junto à janela, colei os olhos na senhora.
Usava uma boina cor de laranja, impecavelmente posta, e o laranja da boina e o vermelho dos lábios irradiavam um colorido que encaixavam bem, alegravam a carruagem.
Mas a senhora que ia sentada à minha frente no metro chamou-me a atenção não só pelas cores que usava vestidas, nem só pela forma como estava vestida, nem mesmo pelo facto de aparentar não ser portuguesa, que não era de certeza – talvez fosse ucraniana, russa, tinha um tom de pele muito claro, olhos azuis e delicados, e o cabelo que deixava sair da boina, a bater no queixo, era de um castanho claro quase loiro.
Seria talvez um pouco mais velha do que eu…
A senhora já vinha no metro quando eu entrei em Matosinhos Sul, e numa serenidade quase a parecer um quadro – ia a ler um livro.
E foi exatamente isso, o livro. Foi o livro que desde logo me prendeu a atenção.
Automaticamente sou atraída por pessoas que seguram livros nas mãos, pessoas que lêem, e de uma forma muito concreta, pessoas que hoje em dia lêem livros no metro.
E o meu instinto foi imediato: tentar descobrir qual o livro que a senhora que seguia sentada à minha frente no metro ia a ler.
Eu não conseguia ver a capa, com o título, porque o livro ia aberto pousado no colo, e aquelas letras pequeninas que por norma mencionam os nomes dos livros no cimo da página estavam demasiado longe, demasiado pequenas, os meus olhos já não chegam lá, e mesmo que as lesse, provavelmente seriam numa língua que eu não ia perceber.
Comecei a fazer conjeturas – não me parecia um livro técnico, nem daqueles de inspirações, teorias de desenvolvimento pessoal ou de frases soltas.
O texto era corrido, seria um romance, será que era de algum autor que eu conhecia?
A senhora ia elegantemente sentada e praticamente sem se mexer, imersa na leitura, com a cabeça levemente inclinada para a janela, até que chegou um momento em que resolveu cruzar a perna, mas quase sem retirar os olhos do livro.
Tentei mentalmente contorcer-me, para ver se de alguma forma conseguia captar o nome do autor do livro, mas sem sucesso, talvez por isso até dispersei um pouco a minha atenção para as botas laranja da senhora. Umas botas de estilo mais prático do que elegante, com um pequeno tacão, mas que combinavam na perfeição com a boina, e com os lábios vermelhos.
Pensei em tirar também eu o meu livro para fora e começar a ler – como que numa tentativa de captar a atenção de quem está a ler, para outra pessoa que também lê – quem sabe a senhora teria essa mesma curiosidade que eu??? –
Mas não o fiz. – “patetice Paula”, pensei de mim para mim, e afinal também já íamos a passar a Casa da Música, a partir dali num instantinho teria de sair.
Entre esses pensamentos parei por breves momentos de fazer marcação cerrada à senhora, gosto sempre de olhar pela janela a seguir à paragem Carolina Michaelis até chegar à estação da Lapa, não que seja uma vista muito bonita, mas é uma vista muito citadina, urbana, vê-se a Rua de Barão de Forrester e o início da Rua de Ceuta, e vêem-se várias casas, até chegarmos ao bairro da Bouça.
Voltei de novo a olhar para a senhora que ia à minha frente sentada no metro – e nesse preciso momento, estávamos na estação da Lapa e eu tinha deixado de olhar pela janela, a senhora pousou os olhos dela nos meus, esboçou um sorriso tímido simpático (provavelmente teria sorrido assim para qualquer pessoa que fosse sentada à sua frente e a olhar para ela, porque me pareceu uma pessoa genuinamente simpática…), e fechou o livro, deixando finalmente à vista o título do livro que ia a ler.
Eu não queria acreditar a coincidência.
O livro não estava de facto em português, pareceu-me em inglês, mas o título e o autor eram inconfundíveis, em qualquer língua que estivesse escrito, e sobressaía numas letras cor de rosa:
Mrs Dalloway, de Virginia Woolf.
Depois tudo aconteceu de forma muito rápida, a senhora começou a preparar-se para sair, pelos vistos também ia sair na estação da Trindade, como eu, e delicadamente enfiou o livro no saco, um saco de pano grosso bonito.
No exato momento em que a senhora arrumou o livro dela e começou a levantar-se, eu esbocei um enorme sorriso e num impulso tirei eu o meu livro para fora – naquele momento senti-me uma criança pateta que fica feliz com pouco – mas não resisti a mostrar –lhe que livro estava eu a ler também, mas em português, claro – nada mais nada menos do que o mesmo – Mrs Dalloway, de Virginia Woolf.
Já fora do metro por entre o aglomerado de pessoas que circulam na plataforma, umas a entrar, outras a sair, e enquanto nos dirigíamos as duas a par para a rua, a senhora de batom vermelho e de boina e botas laranja esboçou um sorriso aberto
“oh, this is a coincidence.
What a wonderful book, right?”
It’s the second time I am reading it, first time I was a young girl.”
Sorrimos imenso uma para a outra, comigo passava-se o mesmo, não sei bem o motivo mas talvez por ter descoberto que um dos livros favoritos de uma escritora portuguesa que eu gosto muito era o Mrs Dalloway, eu fiquei com vontade de voltar a lê-lo.
E de voltar à Clarissa Dalloway.
E de comprar flores, e uma garrafa de vinho….
Em jeito de despedida, eu antecipei-me, – mas tenho a certeza de que se eu não o dissesse, teria sido a senhora a dizer:
“we should go and buy some flowers “.
“Oh Absolutely! ,
and some Wine”
e deu uma enorme gargalhada.
No Metro
Crónicas Viver o Porto (continuação)
O resto da história já não interessa.
Não trocamos contactos, mas ficamos amigas.
Tenho a certeza de que a próxima vez que nos encontrarmos – porque quase que sei que isso vai acontecer – vamos voltar a ter muita coisa em comum.
Para além das flores.
e do vinho.
Para além do vermelho e do cor de laranja.
Para além dos livros, também.
mas certamente esta leveza incrível de quem partilha o gosto pela literatura.
***
***
Crónicas Viver o Porto | No metro
texto e fotos: Paula Calheiros
Leave A Comment