Como é ser Enfermeira em tempos de Covid_19 e estar na linha da frente a ajudar a combater a doença?
É o tema de hoje nas Conversas da Quarentena – conversas que decorrem durante estes tempos estranhos, para uns de confinamento obrigatório (#ficaemcasa #covid_19), para outros, a continuar a ir trabalhar, mas em condições atípicas e novas, lidando com uma realidade que chegou de rompante.
A Melanie é Enfermeira nos cuidados intensivos do Hospital de São João do Porto, e lida desde o início da pandemia unicamente com os doentes afetados pelo Covid-19. Vale a pena ler a entrevista, tão inspiradora, e no final agradecer. Por saber que temos pessoas incríveis a cuidar dos doentes, que um dia podemos ser nós ou um dos nossos familiares.
Apesar de ter começado esta Série de entrevistas com pessoas da minha comunidade física, hoje passei para alguém, que não morando nem trabalhando perto de mim, faz parte da minha comunidade online.
Leia tudo.
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How is it to be a nurse in times of Covid_19, dealing directly with the virus and helping to fight the illness?
This is today’s theme at my Quarantine Talks Serie – talks that occur during these strange times, for some of us of compulsory confinement (#stayathome #Covid_19), for others, going to work in atypical and new conditions, dealing with a reality that arrived without notice.
Melanie is a nurse at the Intensive Care unity at Hospital de São João, and deals from the beginning of the Pandemia only with patients infected with Covid_19.
it is worth reading the interview, so inspiring, and after that be grateful to know that we have incredible people taking care of the patients, who could one day be ourselves or someone of our family!
Despite I started these Quarantine Talks with people from my local community, today I have someone who does not live nor work close to me, but who belongs to my online community.
Read all about it!
Ser Enfermeira em Tempos de Covid_19
Conversas da Quarentena | Quarantine Talks
Melanie Rocha. | credits pictures: Melanie
Um primeiro enquadramento, para percebermos quem é a Melanie e em que contexto estás a lidar com esta Pandemia:
O meu nome é Melanie Rocha, sou enfermeira ha 15 anos e sempre trabalhei na área do doente crítico (urgência de adultos, cuidados Intensivos e cuidados intermédios).
Há 12 anos que exerço no Centro Hospitalar e Universitário de São João (CHUSJ), inicialmente na Urgência de adultos e depois, até à atualidade, na Unidade Polivalente de Cuidados Intermédios da Urgência. (Cuidados Intensivos nível 2).
O início desta Pandemia foi marcado profissionalmente por uma mudança também de serviço… Por necessidade de reforço de enfermeiros com experiência em Cuidados Intermédios, eu e mais 3 elementos da minha equipa fomos transferidos para a Unidade de Cuidados Intermédios da Medicina (no Piso 4) que ficou dedicada unicamente a doentes Covid-19.
Vivo com o meu namorado e, embora inicialmente ainda tenha ponderado sair de casa e ir viver temporariamente para algum alojamento, de modo a protegê-lo, tomamos a decisão conjunta de assumirmos este risco. Contudo, com a premissa de ambos não convivermos com mais nenhum familiar e amigo.
Considero-me uma sortuda por poder voltar para minha casa e zona de conforto ao final de um turno.
Pois um dos reais impactos para os profissionais de saúde é terem sido obrigados a sair de suas casas por partilharem habitação com crianças/filhos menores e/ou pessoas com outras patologias, de modo a protegerem os seus familiares.
E assim, ao fim de uma longa jornada de trabalho, fisica e psicologicamente exaustos, nao vão para o seu lar e sítio de conforto, mas sim para quartos de hotel ou alojamentos sem se sentirem em casa, espaços (muitas vezes até bonitos), mas vazios de emoção.
Convém, no entanto, agradecer a cada proprietário destes espaços que foram cedidos, pois sem esta possibilidade os níveis de ansiedade e preocupação dos profissionais ainda iriam aumentar mais.
Obrigada de coração!
Ser Enfermeira em Tempos de Covid_19
I – Como é acordar e preparares-te para mais um dia, de combate ao Covid_19, enquanto enfermeira e a lidar de perto com a doença e com o vírus?
Trabalhamos por turnos rotativos e, portanto, o dia de trabalho nem sempre começa de manhã. Mas, independentemente do horário, a preparação para cada turno é semelhante.
Assim resumo por 4 ítems os pontos-chave que tento cumprir para me ajudar:
– Alimentação equilibrada: manter refeições saudáveis e regulares em casa é essencial, pois durante o turno nunca sabemos quando será a próxima pausa e podemos estar muitas horas sem conseguir comer e muitas vezes recorremos a algum snack, à pressa. Tento sempre comer calmamente antes de sair de casa para trabalhar.
– Reforço da hidratação: ingerir mais líquidos do que o habitual é primordial nesta fase. O uso contínuo de máscara causa secura da mucosa oral e, para além disso, o uso por horas prolongadas dos restantes equipamentos de proteção individual causa transpiração excessiva e ficamos impedidos de poder beber durante este periodo.
– Sono/ Repouso: Aproveitar para descansar o máximo tempo possível antes e depois de cada turno. Muitos de nós apresenta neste momento insónia inicial ou intermédia, i.e., apesar do cansaço físico marcado e sensação de “corpo cansado”, a agitação que decorre de um turno, com níveis de stress e alerta aumentados, prolonga-se mesmo após o seu término, mantendo um estado de hipervigilância que
nos impossibilita de adormecermos com facilidade ou que nos desperta a meio do sono, impedindo-nos de voltar a adormecer. Estes sintomas estão também relacionados com niveis de ansiedade e desgaste emocional e psicológico acumulados. Apesar de muitos anos de experiência com doente crítico e suas famílias e já ter estratégias de coping desenvolvidas, nem todas resultam agora e, assim é preciso assumir que há muitas histórias e momentos com emoções difíceis que “levamos conosco para casa”.
– Criar uma rotina de “normalidade” (dentro da situação anormal): Manter os contatos sociais e relações de proximidade com família e amigos (videoconferência e videochamadas) é essencial ao bem-estar de todos. Às vezes, precisamos mesmo de desabafar alguma situação mais difícil de lidar ou medos dentro e fora do hospital, para conseguirmos olhar de forma diferente e avançar. Àparte disso umas gargalhadas.
Manter alguns hobbies habituais como a leitura, ouvir música, dançar, desporto, escrever, etc…Distrair e permitir um outro foco é libertador. Para mim a meditação já era essencial antes da Pandemia, mas nesta fase, mais do que nunca, tenho necessidade de meditar diariamente e tem-me ajudado muito a centrar e acalmar.
Prefiro neste momento as Meditações guiadas, pois obrigam-me a estar atenta e forçam a minha mente “hipertiva” nesta fase a sair dos pensamentos repetitivos relacionados com o trabalho.
Aconselho muito!
II – Imagino que no hospital os dias estejam a ser bastante mais tensos do que anteriormente.
Como tem sido o ambiente entre todos os colegas de trabalho – médicos, enfermeiros, e outros profissionais de saúde com quem lidas?
Dentro do Hospital as primeiras semanas foram realmente um Tsunami…mudanças constantes, circuitos de circulação, protocolos, procedimentos e serviços novos surgiam diariamente e “em cascata” .
Lembro-me de comentar, nos primeiros dias, com uma colega que estar e olhar para o nosso Hospital naquela fase, parecia estar a espreitar por um “caleidoscópio”. Esta metáfora é mesmo a imagem que mantenho dessas semanas: a cada dia/ rotação uma nova imagem/circuitos/protocolos/procedimentos surgiam. Cada dia era único, novo e diferente.
Ora, perante este cenário em ebulição, também nós recursos humanos e profissionais ficamos apreensivos e até um pouco assustados numa primeira fase…
Mas desde do primeiro minuto que percebi também, que apesar do nervosismo, havia um uníssono dentro daquela casa:
“Vai ser duro, mas nós estamos motivados e vamos lutar para ajudar a superar este momento!”.
Ouvi muitos desabafos de medo por causa dos riscos de poder infetar familiares ou tristeza por ter consciência de ser essencial manter afastamento de quem amamos (incluido filhos bébés ou menores), mas nunca ouvi nenhum profissional a dizer: eu quero” fugir” daqui agora. Muito pelo contrário!
Infelizmente, muitos profissionais ficaram e ainda continuam a ficar infetados/doentes e vi muitos médicos e colegas menos preocupados consigo próprios do que com os seus familiares (isso sim!) e por, deste modo, não poderem continuar a ajudar no Hospital. Isto diz muito sobre este espírito de missão.
E sim, para além do número, a gravidade dos doentes Covid-19 obrigou a reajustar e readaptar serviços e a mobilizar profissionais dentro do Hospital para dar resposta.
Houve serviços que foram criados de raiz, com profissionais mobilizados de diferentes serviços e com diferentes experiências e conseguiram em poucos dias, criar equipas multidisciplinares unidas, eficientes e com uma capacidade de resposta incrível em cuidados intensivos, ou seja, onde é exigido um nível de conhecimentos e perícia elevado. Conseguir isto é um exemplo louvável e inesquecível desta união e vontade suprema de vencer que se vive neste e noutros hospitais de Portugal. Isto só é possível com muita coragem, motivação e superação! Pois todos foram “empurrados” para fora da sua zona de conforto e ninguém conhece ainda verdadeiramente esta doença, sua evolução e suas consequências reais!
Uma das grandes diferenças perante o passado é também a impossibilidade de visitas aos hospitais. Isto é algo que nos afeta muito, pois vemos os doentes sem apoio familiar e tantas vezes preocupados com os seus familiares por um lado, e do outro lado falamos telefonicamente ou em videochamada com familiares em casa preocupados e ansiosos por não conseguirem estar e apoiar o seu familiar internado. O uso e disponibilização de telemoveis e tablets pelo hospital foi um medida absolutamente essencial para manter o contato entre doentes mais estáveis e seus familiares, mas serve também para momentos mais difíceis. Como por exemplo, doentes instáveis críticos se conseguirem despedir antes ou durante o internamento em cuidados intensivos.
Isto é algo muito sensível e difícil de lidar para todos nós, pois até esta Pandemia chegar, foi sempre possível permitir a visita dos familiares para se poderem despedir presencialmente…
Ainda temos muita dificuldade em lidar com este tema novo e só espero que temporário.
credits pictures: Melanie
III – A que pensamentos, crenças ou inspirações te agarras para seguir em frente?
Para mim pessoalmente, os primeiros dias foram difíceis e assustadores, pois era tanta novidade, e as imagens, notícias e relatos de profissionais de saúde que iam surgindo de outros países eram chocantes e assustadoras, principalmente para quem tem noção e experiência no cuidado ao doente crítico.
Soube sempre que era essencial eu manter a motivação mas também o equilíbrio mental e emocional para poder ajudar. Precisei portanto, depois do primeiro “embate”, resguardar um tempo para só comigo para respirar, acalmar, centrar, aceitar e ressignificar.
Foi essencial!
Neste momento refleti em algumas das minhas crenças e valores e encontrei aí algumas “âncoras” que me ajudam.
Uma delas é um frase, que poderá parecer cliché, mas que representa algo essencial para mantermos foco perante uma situaçâo complexa e em que há vários interveninentes:
“Controlar aquilo que consigo controlar. Entregar e relaxar sobre aquilo que não controlo.”
Isto ajuda-me a focar sempre em dar o meu melhor na minha tarefa (neste caso específico cuidados de enfermagem) e entregar aos outros interveninentes (neste caso profissionais e/ou outros fatores) aquilo que não controlo.
Outra das metáforas à qual recorro muitas vezes na minha vida pessoal e profissional, e também foi importante para mim nesta fase, é acerca do Caminho de Santiago.
Como peregrina de já vários Caminhos de Santiago este representa para mim, uma jornada de vida…Um desafio! (tal como esta Pandemia!)
O Caminho representa para mim a palavra CONFIAR! (que é o meu mantra preferido), pois no caminho confio nas setas/ sinais que me vão indicando por onde seguir e durante o Caminho vou mais atenta aos detalhes e pormenores, pois o silêncio ajuda a estarmos mais atentos ao que nos rodeia e os encontros e conversas que vamos partilhando com quem partilha o caminho conosco (desconhecidos) também nos podem trazer novas perspetivas/ insights. No caminho temos que levar apenas o essencial e cuidar de nós mesmos e da nossa bagagem, mas tambem estar atento e cuidar de quem nos rodeia.
Lá para mim “Está sempre tudo certo!” e entrego-me ao desconhecido (paisagens, terrenos, subidas e descidas) sem medo, apreciando e crescendo em cada aqui e agora.
Como vês, estas crenças são muito pessoais e não replicáveis para outra pessoa, mas para mim são válidas e ajudam.
Outro fator não subjetivo que me ajuda, acima de tudo, é ter consciência das minhas capacidades, experiência e competências profissinais e saber que estou rodeada de profissionais de saúde de excelência e que estão aqui para dar o seu melhor.
Isto é a maior força e certeza de todas!
IV – Assusta-te a ideia de poder contrair o virus? Sentes medo? Como te proteges?
O medo de ficar infetada existe obviamente por mim, mas pricipalmente o medo de poder ser vetor de transmissão para familiares, elementos da equipa ou outros doentes não-covid.
A verdade é que o medo maior de todos os profissionais era a possibilidade de escassearem os Equipamentos de Proteção Individual específicos a cada nível de cuidados ais doentes Covid-19, pois é essencial estarmos protegidos para nos podermos sentir seguros e prestar cuidados seguros. A falta de proteção não permitiria que pudessemos dar o nosso melhor, pois a insegurança para além de ser transmitida aos doentes também obrigaria a prestação de cuidados apressados para estarmos o mínimo tempo junto do doente, etc.
Graças à organização do meu Hospital, juntamente com dádivas de muitas entidades e empresas privadas que foram altruistas e espetaculares,
NUNCA TIVE FALTA DE EQUIPAMENTO DE PROTEÇÃO, no contexto desta Pandemia.
E não poderia estar mais grata a todos!
Quanto a ajustes domésticos para minimizar risco de contaminação, criei um circuito em casa para sujos e limpos. Assim, os sapatos de uso exterior ficam a porta e no hall de entrada tenho um sitio específico onde, mal entro, tenho um tapete onde me dispo e um saco onde coloco a roupa que vai diretanente para a lavandaria. Daí, calço uns chinelos e dirijo-me diretamente para o chuveiro.
Quanto aos familiares e amigos decidi que não estou com eles, pelo que as videochamadas inundaram a minha vida. E ainda bem!
Estou também muito grata pelo fato de ver os meus familiares, por enquanto, a cumprir todas as indicações e em segurança. Isso seria um enorme fator de preocupação.
Ontem, passados 61 dias sem ver os meus pais ao vivo, foi o aniversário do meu pai e eu pela primeira vez decidi ir até à sua porta, para cantar os Parabéns a partir do carro.
Foi um momento muito estranho, mas soube-me pela vida vê-los ao vivo e eles também adoraram (mesmo que distantes).
credits pictures: Melanie
V – O que vais guardar na memória depois de tudo isto passar?
Vou guardar na memória tantas coisas…
Apenas passaram 2 meses e parece que passaram anos e esta sensação é partilhada por muitos colegas e, obviamente, que acredito que também é partilhada pela sociedade em geral, por motivos diferentes.
Vou guardar na memória toda a equipa multidisciplinar com quem trabalhei e trabalho nesta fase: cada um na sua tarefa, a esforçar-se ao máximo, sem folgas ou férias e com uma dedicação absoluta diária. E o fato de, para além deste esforço, ainda conseguirem estar atentos uns aos outros, a cuidarem-se e a apoiarem-se mutuamente. Um orgulho poder fazer parte deste fenómeno de união e entrega absoluta.
NINGUÉM ESTÁ SOZINHO NO HOSPITAL (nem doentes, nem profissionais)!
Nunca irei esquecer os doentes que cuido neste momento especial.
Não vou focar uma história em particular, pois são muitas e cada uma tem o seu valor único.
Mas é um momento muito diferente de todos os que já vivi no Hospital, pois como referi a ausência do apoio familiar e, tantas vezes, a impossibilidade de uma despedida presencial e digna é algo que não nos deixa indiferentes e são emoções difíceis de gerir.
E ainda bem, pois senão algo estaria muito errado.
No dia em que eu ficar indiferente a uma videochamada de um pai jovem em risco de vida a despedir-se da sua filha de 4 anos ou a uma videochamada de uma filha jovem que acaba de sobreviver aos cuidados intensivos e fala pela primeira vez novamente com a sua mãe, deixo de ser enfermeira.
E também nunca me vou esquecer das histórias de vitória e superação de doentes que estiveram hipercríticos em risco de vida, recuperarem!
Festejamos estes momentos como nossos, acreditem!
Uma memória que fica também é a onda de solidariedade que surgiu nesta Pandemia.
Comoveu-ne tanta coisa: os vizinhos mais jovens irem às compras pelos mais idosos ou doentes; as caixas solidárias dispostas em algumas ruas para doação de alimentos de outros bens essenciais aos mais necessitados (e são cada cez mais); a coragem dos voluntários que continuam a apoiar os sem-abrigo e pessoas em desproteção social servindo-lhes refeições ou outros apoios, mesmo perante a exposição aos riscos.
Orgulha-me fazer parte de uma sociedade que a grande maioria cumpriu as recomendações nesta primeira vaga, conseguindo evitar a ruptura do SNS.
Creio que a Pandemia, como qualquer momento de crise, tem o poder e potencial de revelar o melhor e o pior de cada um.
São momentos de prova de caráter e dão a oportunidade, se quisermos, de sermos pessoas ainda mais atentas ao outros e melhores.
Obrigada a todos!
VI – E a primeira coisa que vais querer fazer ?
Abraçar calma e serenamente a minha família e poder olhá-los nos olhos a curta distância, sem pressas.
E ir a praia ver um pôr do sol e molhar os pés na água.
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Obrigada Melanie,
por teres dedicado um pouco do teu tempo precioso de descanso a responder a estas perguntas!
E pelas respostas inspiradoras.
Do coração.
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NOTE:
English version Soon.
credits pictures: Melanie
Conversas da Quarentena IV | Enfermeira em Tempos de Covid_19
Melanie Rocha –
Enfermeira no Hospital de S. João do Porto
Entrevista: Paula Calheiros
entrevista feita por e-mail.
Imagens cedidas por Melanie Rocha
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